Assim, de repente, Hermínia Prata, da direcção da Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género (AMPLOS) recorda-se de dois casos que nunca deviam ter acontecido. “Tivemos aqui conhecimento de um director de uma escola que se mostrou muito receptivo, quando os pais do jovem [transgénero] foram falar com ele sobre o acesso à casa-de-banho, mas que depois o que fez foi pôr-se em frente a ela, a gozar com o miúdo. E de uma jovem trans na Madeira, que depois do confinamento, quando a mãe se dirigiu à escola a pedir apoio para ela regressar às aulas presenciais, já que era alvo de bullying, a ouviu dizer à miúda que o melhor era meter baixa até ao fim do ano para não ter problemas”, conta, ao telefone.
Hermínia Prata até admite que “há escolas que são bastante inclusivas e ultrapassam as questões dos jovens trans com alguma facilidade, fazendo com que as crianças se tornem seguras”, mas também há situações como as que relatou e é por causa disso que defende que uma iniciativa legislativa como a do PS é “fundamental”. “Não podemos ver só uma realidade, não podemos ver só as escolas em que tudo corre bem, há que perceber que a nível nacional há muitas escolas onde isso não acontece e tem de haver legislação que salvaguarde a vida destes jovens”, defende.
O partido socialista avançou com um projecto de lei, similar a um outro de 2019, declarado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, que pretende regulamentar o tratamento dado às crianças e jovens transgénero (que não se identificam com a identidade de género que lhes é atribuída à nascença) nas escolas, nomeadamente obrigando os estabelecimentos de ensino a utilizarem “o nome auto-atribuído em todas as actividades escolares e extra-escolares”.
O responsável da ANDAEP diz ainda que gostava que as escolas não fossem as únicas visadas numa proposta de lei com este teor. “Imputamos muitos deveres às escolas e era bom que a sociedade acompanhasse esta proposta de lei, se ela for aprovada. Gostava que a sociedade adoptasse os procedimentos que temos nas escolas com estes jovens. Este documento não devia ficar nas escolas, devia ser alargado para a sociedade”, diz.
Casos resolvidos com “discrição”
Também Manuel Pereira, da Associação Nacional de Dirigentes Escolares não vê urgência numa intervenção legislativa nesta matéria. “Na maior parte das escolas isto não é sequer uma questão e os casos mais sensíveis são sempre tratados com sensibilidade, pelo menos é essa a nova vontade: estarmos atentos, saber respeitar, ouvir e não há muito mais a fazer. Não vejo necessidade de regular uma situação que não é tão alargada assim”, diz.
Manuel Pereira diz que, pela sua experiência, casos que envolvam crianças e jovens transgénero têm sido acompanhados nas escolas, com recursos ao apoio de “psicólogas” e “técnicos sociais”, sempre que necessário, e sempre com a máxima “discrição”. “É tudo feito com pinças, e por isso é que as situações que surgem, na maior parte dos casos, não têm sido notícia”, argumenta.
“Discrição” é o termo também utilizado por Jorge Ascenção, da Confederação Nacional das Associações de Pais (Confap), para estes casos. “Como já tínhamos dito [em 2019], estes casos devem ser tratados de forma discreta e com naturalidade. Se estamos a diferenciar algum tipo de comportamento, evidenciando-o, podemos estar a criar alguns constrangimentos. Julgo que [legislação deste tipo] deveria ser dispensável, era desejável que fosse dispensável. Vamos a um shopping, ao cinema e não há nada [regulamentado sobre isto]. É algo que não deve ser discriminado. Não deve acontecer, temos de respeitar-nos enquanto seres humanos.”
Hermínia Prata insiste que a legislação é necessária. “Não se pretende dizer às pessoas como devem trabalhar, mas salvaguardar os miúdos naqueles casos em que o bom senso por parte da comunidade escolar não existe. Ninguém quer mandar em ninguém.”
Em 2019, o secretário de Estado da Educação, João Costa, adiantava que as crianças e jovens transgénero no ensino não superior poderiam rondar os “200”. A responsável da AMPLOS não arrisca um número, mas tem a percepção de que “há cada vez mais casos”. Na associação, a mudança das reuniões quinzenais para o universo digital fez com que mais pais aparecessem à procura. “Em todas elas apareciam pais novos e de todo o país, porque o acesso tornou-se mais fácil pela internet. Até tivemos o contacto de uma família do Luxemburgo e o contacto de uma mãe de Cabo Verde”, diz.